As Terras da Costa

Sem água, saneamento e com casas precárias.

Eram estas as condições de vida de quase 500 pessoas – aproximadamente 100 crianças – que habitavam (e habitam em parte) um bairro de génese ilegal na Costa da Caparica. Designado Terras da Costa, o bairro nos seus dois núcleos, foi sempre composto por dois grupos distintos. Um com origem nos países africanos de língua portuguesa, maioritariamente cabo verdianos, e outros de origem cigana.

Os moradores do núcleo que se situava junto à Rua do Juncal, foram realojados em março de 2016, hoje ainda permanecem cerca de 50 famílias, maioritariamente de Cabo-Verde, Guiné e São Tomé.

Não existem dados oficiais relativos à génese do bairro mas, sabe-se que terá começado a partir das casas de apoio agrícola, algures durante os finais de 1970. Em 2001, numa foto aérea conseguimos já identificar o bairro consolidado.


De território isolado a visível

As Terras da Costa eram um bairro escondido, pela geografia natural ou intencionalmente - como na imagem de abertura da página oficial da antiga Junta de Freguesia (2013) na qual aparecia uma fotografia tirada a partir do alto da arriba fóssil e o lettering da Junta de Freguesia tapava, criteriosamente, as casas do bairro para só se ver o mar e as torres de habitação.

O ateliermob começou a trabalhar com esta comunidade no workshop “Noutra Costa”, promovido pela Universidade Autónoma de Lisboa. Logo após o fim do workshop, o colectivo Fronteiras Urbanas e o ateliermob reuniram-se, e entre outras coisas, discutiu-se o problema da falta de água no bairro e possíveis soluções. Cedo se percebeu que a resolução de um problema concreto implicava um esforço coletivo considerável e que a pressão das contrariedades obrigava a um reforço organizativo em torno da Associação de Moradores. Foi em assembleia de bairro, que se formalizou o desejo de ter a Cozinha Comunitária das Terras da Costa.

Em várias reuniões com a Câmara Municipal de Almada, o ateliermob propôs-se a tratar do futuro imediato e do problema do acesso à água, também transmitiu alguns relatos de operações policiais violentas no território das Terras da Costa, que ultrapassavam os limites da ação da segurança pública.

Em agosto de 2013, o colectivo Warehouse doou ao projeto das Terras da Costa as madeiras que iriam resultar do desmantelar do projeto da Cova a Vapor. E aqui começa uma parceria que continua até hoje. A 8 de dezembro de 2014 a Cozinha Comunitária das Terras da Costa é formalmente inaugurada, e a água finalmente chega ao bairro, gerando um clima de grande alegria.

Com a Cozinha Comunitária realizada, num impasse sobre o que iria suceder no bairro e se havia condições para que as equipas técnicas continuassem a trabalhar, surge o Prémio Building of the Year 2016 no sector de arquitetura pública, atribuído pela Archdaily. Mantêm-se a ideia de que a visibilidade é central para a luta destes territórios.

Esta história não teria sido possível sem a resiliência dos moradores do bairro, sem o apoio da Câmara Municipal de Almada e dos Serviços Municipalizados de Água e Saneamento de Almada, e também o apoio financeiro da Fundação Calouste Gulbenkian através do seu Programa Desenvolvimento Humano.

Cronologia

2012

23 - 29 junho

workshop Noutra Costa

Entre 23 e 29 de junho de 2012, a Universidade Autónoma de Lisboa realizou o workshop Noutra Costa, direcionado a alunos de arquitetura. O ateliermob foi convidado, pela antropóloga Filipa Ramalhete e pelo arquiteto Pedro Campos Costa, para orientar um dos grupos de alunos. O workshop foi mediado por Euclides Fernandes, morador no bairro e que trabalhava no projeto Fronteiras Urbanas, que se revelou um agente essencial ao desenvolvimento da proposta final.

29 junho

Jogo da Bola nas Terras de Lelo Martins, no âmbito do workshop Noutra Costa.

novembro

Em novembro de 2012, o ateliermob teve a primeira reunião com o município de Almada.

O município começou por deixar clara a sua total indisponibilidade para iniciar qualquer processo de regularização urbanística do bairro.

2013

fevereiro

Decisão comunitária de que a construção da Cozinha era um passo prioritário.

13 março

O trabalho de design desenvolvido pelo Studio AH-HA permitiu a criação de toda a imagética relacionada com a Cozinha.

22 março

Menção Honrosa do Prémio Crisis Buster da Trienal de Arquitectura de Lisboa.

22 março

Projeto financiado pelo Programa Gulbenkian de Desenvolvimento Humano, da Fundação Calouste Gulbenkian.

28 junho a 1 julho

O ateliermob foi selecionado para apresentar a ideia da Cozinha Comunitária na 7ª Edição do Festival de Arquitetura EME3 em Barcelona.

agosto

A chegada do colectivo Warehouse.

Alexander Römer, membro do coletivo franco-alemão Exyzt, contacta o ateliermob, para doar ao projeto das Terras da Costa as madeiras que iriam resultar do desmantelar do projeto da Cova do Vapor.

outubro

Escolha do sítio para a construção da Cozinha e limpeza do local pela equipa e moradores.

2014

março

Após um período de expectativa de 5 meses e ainda sem apoio financeiro, iniciou-se a primeira fase da construção da Cozinha Comunitária, que se prolongou por duas semanas.

abril - maio

Realização de workshops e eventos.

5 maio

Realizou-se a primeira e a mais importante reunião nas Terras da Costa, com os vários dirigentes municipais e os Serviços Municipalizados de Água e Saneamento de Almada. Anunciou-se o apoio do município à realização da cozinha, e que a água seria fornecida de forma gratuita.

23 julho

Com a Cozinha Comunitária em construção e mantendo-se a ideia de que a visibilidade é central para a luta destes territórios, surge o convite para participar num programa de larga audiência numa televisão generalista de canal aberto (Boa tarde, SIC).

agosto

No início de agosto arrancou a segunda fase do projeto, de escala superior à primeira.

setembro - novembro

Organização de eventos e atividades na Cozinha, tais como: performances de teatro, oficinas de pintura, projeção de filmes de animação e outras atividades para as crianças, produção de sabão biológico e oficinas de costura.

Durante este período de construção, a Cozinha adquiriu desde logo a função de centro comunitário.

8 dezembro

A Cozinha Comunitária das Terras da Costa é formalmente inaugurada. Mais do que isso, a água chega finalmente ao bairro.

2015

maio

Foram desmanteladas todas as puxadas ilegais, gerando uma enorme tensão no bairro.

Confrontada com a insustentabilidade da situação, a Câmara Municipal de Almada prontamente disponibilizou um gerador de emergência que assegurou o fornecimento de energia elétrica durante os meses seguintes.

2016

9 fevereiro

Vencedores do Prémio ArchDaily Building of the Year 2016, na categoria de arquitetura pública com a Cozinha Comunitária das Terras da Costa / ateliermob + coletivo warehouse.

março

Realojamento de todos os moradores do núcleo da Rua do Juncal, que ainda se inseria no programa PER, ainda que com a promessa de poderem ser integrados no futuro processo de realojamento.

abril

Em finais de abril de 2016, a equipa técnica reúne-se com os membros da Associação de Moradores dando conta da sua disponibilidade para iniciar os trabalhos a partir de um segundo financiamento da Fundação Gulbenkian.

14 maio

Já em formato de assembleia de bairro, promoveu-se uma reunião com todos os moradores para explicitar intenções, determinar limites de ação e também descrever o método e as fases de trabalho conjunto propostos.

Esta etapa do trabalho era a tentativa de construir uma série de premissas base para o processo de realojamento que pudessem servir de orientação para a ação do município.

julho - outubro

Definiram-se 3 fases distintas de trabalho. Começou-se por um levantamento esquemático de cada uma das casas acompanhado de um inquérito, um mapeamento coletivo e finalmente a escolha da possível localização do novo bairro.

novembro

Sessão de trabalho incluindo os moradores, e responder a questões que parecem decisivas.

2017

fevereiro

Chega a primeira conta de electricidade no bairro.

março

A prometida solução de realojamento foi lentamente sendo adiada para depois das eleições autárquicas de 2017.

1 outubro

A CDU que liderava a Câmara Municipal perde as eleições, sendo estas ganhas pelo Partido Socialista.

A inesperada quebra de ciclo político leva-nos a pensar que também para nós se encerra um ciclo de trabalhos. Mantemos a esperança que se retomem.